Criamos uma indústria da moda onde as pessoas morrem e o show continua", diz um dos protestos que circularam pelas redes sociais neste fim de semana, após a notícia de que o modelo Tales Soares, conhecido como Tales Cotta, veio a falecer após ter um mal súbito durante o desfile da Ocksa, estreante SPFW, no sábado (27).
Antes mesmo de a notícia da morte ter sido anunciada, alguns profissionais da área já se manifestavam nas redes sociais, chocados com o fato de o desfile ter sido reiniciado, como se nada se tivesse acontecido. Um deles foi o jornalista Eduardo Viveiros. "Eu estou dentro do SPFW há quase vinte anos. Já vi muita coisa, várias fatalidades micro, brigas de ego e de estruturas dissonantes. Mas passar em cima de alguém - quase que literalmente - é minha primeira vez. O menino Tales teve um seilaoque no meio do desfile, caindo desacordado no chão da passarela. Foi socorrido, amparado, tudo do jeito certo. Mas claramente, nada estava bem. E não existe fingir que estava. Não existe continuar um desfile como se nada fora. Muito menos RECOMEÇAR", escreveu.
Na análise de Viveiros, não se trata de atacar o trabalho de estilista, marca, stylist, costureiros, organização, qualquer um. "Mas passar em cima de alguém assim é ceder ao pior lado de um sistema que já é cruel a muita gente. É como tirar uma peça para a engrenagem continuar rolando. E não pode ser assim. Não deveria poder ser assim. Tá na hora de repensar MUITA coisa. THE SHOW MUST GO ON é o c******", avaliou.
Quem estava na sala relatou que aquilo que a princípio poderia sugerir uma "performance" logo se mostrou uma tragédia. Segundo muitos, o corpo de Tales apresentava claros sinais de colapso, e não havia clima para continuar. Mas a apresentação recomeçou, as portas continuaram fechadas e a música voltou assim que Tales foi socorrido.
A notícia da morte, confirmada pela organização por volta das 19h, gerou mais indignação. A designer Juliana Ali, que cobriu a área de moda por muitos anos, se disse orgulhosa por não fazer mais parte "desse universo excludente, frio, datado, movido por aparência, desumano e elitista que é o mundo da moda".
"É um microuniverso que não soube evoluir com o resto do planeta, fechado em uma bolha tosca e vazia, sem noção alguma de nada que a cerca, um recorte de realidade que permanece igualzinho era em 1990, com suas modelos esquálidas e famintas, maltratadas pelo mercado, meros cabides mal pagos, sofrendo para se encaixar em um padrão estético que há muito tempo não faz nenhum sentido. A moda está parada no tempo há muito tempo, absolutamente estática, vergonhosamente orgulhosa de sei lá o que, ainda barrando pessoas na porta porque são 'feias demais' ou 'pobres demais', mas não percebeu que a fila da porta de entrada, hoje em dia, não tem mais quase ninguém", escreveu Juliana em seu perfil no Facebook.
Diante das críticas, a organização do SPFW soltou um comunicado, no qual informa ter se reunido com as marcas, diretores de desfiles, stylists e modelos próximos de Tales, que tinham desfiles na programação, e foi dada a opção de cancelar os mesmos. "Mesmo abalados, decidiram manter os desfiles. Todos os envolvidos foram acompanhados de perto", informou a Luminosidade, responsável pelo evento.
Rosângela Espinossi, do Elas no Tapete Vermelho, site parceiro do R7, viu Tales cair na sua frente. Agora, dois dias depois, propõe a reflexão. "Sobre cancelar ou não? Sinceramente, fico sem poder dar uma resposta exata. Estou em cima do muro? Pode ser que sim. Um dos desfiles posteriores ao anúncio da morte foi o do Projeto Ponto Firme, capitaneado pelo estilista Gustavo Silvestre, na penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos. Foi um trabalho de meses, dos detentos tecendo as peças. Foi um desfile lindo e engajado. Num momento em que é necessário falar de coisas boas neste Brasil Seria justo não desfilar? Seria justo não mostrar todo aquele lindo trabalho?"
Não é uma decisão simples. Mas fica um gosto de fel no céu da boca saber que esse mecanismo moedor de almas não é capaz de parar, nem diante da morte. O cantor Rico Dalasam, no desfile da Cavalera, que encerrou o evento, fazia parte do casting da marca e resolveu se manifestar: “Não era pra ninguém estar aqui. O garoto acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada. Não era pra ninguém estar aqui”, protestou, estando lá... Ele não deixou de subir na passarela, ainda que tenha usado o espaço de palanque.
A palavra final sobre essa polêmica de parar ou não o evento, dita por Heloisa Tales, mãe do modelo, é um soco no estômago: “Cancelar iria trazer ele de volta? Nem ele gostaria disso. Era muito profissional.”
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