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'Sem encarceramento massivo, facções não seriam tão grandes', diz especialista em tema

terça-feira, 30 de julho de 2019

/ por News Paraíba

No Brasil dos anos 1990, a existência de uma facção ligada ao narcotráfico era uma ameaça restrita ao Rio de Janeiro. De uma década para cá, o brasileiro não só presenciou a consolidação de uma facção paulista, hoje a maior organização criminosa do país, com presença em todos os estados, além do surgimento de outras menores. Para o cientista político americano Benjamin Lessing , professor da Universidade de Chicago (EUA), esse fenômeno de “ faccionalização ” só foi possível devido às políticas de encarceramento em massa.

Autor de “Making Peace in Drug Wars: Crackdowns and Cartels in Latin America” (Construindo a paz na guerra às drogas: repressões e cartéis na América Latina, Cambridge University Press, que em breve deve ser traduzido para o português), Lessing investigou como Brasil, México e Colômbia foram devastados por uma nova forma de conflito, em que máfias armadas lutam entre si e contra o próprio Estado. De volta ao Rio de Janeiro, onde viveu de 2001 a 2005, conduz agora as pesquisas de seu segundo livro, ainda sem data de lançamento.
 
Os maiores massacres em presídios do Brasil

Segundo O Globo, em outubro de 1992, 111 presos foram mortos após a Polícia Militar entrar na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, para conter uma rebelião. Setenta e quatro policiais chegaram a ser considerados culpados pela morte de 77 das vítimas (os outros 34 teriam sido mortos por outro detentos), mas o julgamento foi anulado em 2016.

Uma guerra entre facções deixou 56 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) e na Unidade Prisional do Puraquequara (UPP), em Manaus, em janeiro de 2017. A rebelião durou cerca de 12 horas, e foi iniciada após uma fuga de detentos no Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), unidade que fica ao lado do Compaj.

A guerra entre facções criminosas nos presídio matou 33 detentos da Penitenciária Agrícola do Monte Cristo, em Roraima. O massacre foi um dos mais violentos da onda de mortes nos presídios em janeiro de 2017. Além de serem decapitados, alguns corpos tiveram os olhos e o coração arrancados.

Em maio de 2004, criminosos atacaram a Casa de Custódia de Benfica, no Rio de Janeiro, possibilitando a fuga de 14 detentos. Os presos que não conseguiram escapar iniciaram uma rebelião, que durou 62 horas e terminou com a morte de 30 presidiários e de um agente penitenciário. Um pastor evangélico conduziu a negociação que encerrou o conflito.

Rebelião causada pela guerra de facções deixou 26 detentos mortos na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, na Região Metropolitana de Natal. Foi o terceiro massacre em prisão no Brasil nos primeiros 15 dias de janeiro de 2016.

Em janeiro de 2002, 27 detentos foram mortos no presídio Doutor José Mário Alves da Silva, conhecido como Urso Branco, em Porto Velho (RO). O conflito começou após uma mudança nas regras de circulação, que colocou presos ameaçados de morte em celas convencionais.

Em novembro de 2010, uma rebelião no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís (MA), durou cerca de 27 horas e acabou com 18 presos mortos. Os detentos reclamavam das condições do presídio e pediam revisão de seus processos e transferências de presídios. Cinco agentes penitenciários chegaram a ser feitos reféns, mas foram libertados.

Em 2017, 56 detentos morreram durante confronto entre um grupos criminosos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) em Manaus (AM). A mesma penitenciária voltou a registrar episódio semelhante em maio de 2019, quando 55 presos foram assassinados durante um dia de visita de familiares.

Uma rebelião no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Sudoeste do Pará, deixou ao menos 52 mortos em 29 de julho de 2019. Segundo a Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará (Susipe), 16 pessoas foram decapitadas. Os detentos fizeram uma rebelião e mantiveram reféns dois agentes penitenciários.

Lessing já viajou pelo Ceará, Rio Grande do Norte e Amazonas para tentar entender como uma organização formada num presídio se expande do lado de fora, controla mercados ilícitos, a massa carcerária e as periferias urbanas. Nesta semana, ele discutirá os desafios para controlar o crime na América Latina no 13º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O evento será em João Pessoa, na Paraíba, entre os dias 31 de julho e 2 de agosto.

O senhor está trabalhando em um novo livro sobre facções no Brasil. O que já descobriu?

O livro é sobre um fenômeno que aqui chamam de facções criminosas, mas que eu chamo de gangues prisionais. Na verdade, o formato de crime organizado no Brasil tem se estruturado dessa maneira: se forma dentro do presídio e depois se estrutura do lado de fora. É um formato também visto em outros países. O que mais me chamou atenção e deu impulso a esse livro foi a faccionalização do Brasil. Se voltarmos no tempo, para os anos 1990, facção era algo do Rio de Janeiro. Inclusive a segurança pública de São Paulo repetia: “aqui não é como no Rio de Janeiro, não tem armas, fuzis”. Já com as megarebeliões e os ataques de 2006, ficou claro que São Paulo também estava faccionalizada. Por mais que o governo no início negasse. Mas, mesmo assim, as facções eram limitadas a São Paulo e Rio no começo dos anos 2000. Nos últimos quinze anos, vimos não só a expansão deliberada da facção paulista e, em menor grau, do facção do Rio, mas também o surgimento de facções locais aos moldes desses primeiras e que têm poder significativo nos estados deles. O panorama atual é que quase todos os estados brasileiros são faccionalizados. O sistema penitenciário é segregado por facção e tem papel importante para manter a ordem no sistema. Do lado de fora, as periferias das grandes cidades são divididas em territórios que correspondem a determinadas facções.

Por que as facções se expandiram tanto?

A essa altura, já é bem claro que o encarceramento em massa tem ajudado e facilitado o crescimento das facções. É indubitável. O caso de São Paulo deixa isso claro. As taxas de encarceramento vêm crescendo desde os anos 1990 e, durante esse tempo, o poder da facção só cresceu. Quando houve os ataques de 2006, foram na faixa de 80 presídios que se rebelaram ao mesmo tempo. Só é possível que uma organização criminosa faça algo desse tamanho se tem tantos presídios para se rebelar. A própria força da facção paulista veio do tamanho do sistema carcerário de São Paulo. As taxas de encarceramento estão crescentes em vários estados. Muitas vezes, você vê isso relacionado ao crescimento e fortalecimento das facções. A lógica disso é simples: quando um preso entra, ele depende da facção que comanda aquele presídio. A facção tem facilidade para recrutar novos membros.

Nos EUA, país com a maior população prisional do mundo, há facções criminosas tão hegemônicas?

Não sou especialista na criminologia dos Estados Unidos, mas pretendo com o livro levar para lá as lições aprendidas com o caso brasileiro. Lá, existem as gangues prisionais. Assim como aqui, quando um preso chega ao sistema americano é colocado em determinado presídio, dependendo de qual gangue pertence. Nos Estados Unidos, as facções são divididas por raças — há a negra, a branca, as latinas — e têm certo ódio entre si. Isso acaba delimitando o poder delas.

Seu primeiro livro compara a guerra às drogas no Rio, México e Colômbia. Nesses lugares existe essa faccionalização?

Não. Em comum, esses três lugares têm traficantes que atacam o Estado. No Rio, com tiroteios, tráfico derrubando helicóptero e matando policial. Queria entender por que os cartéis do México e da Colômbia estavam enfrentando o Estado. Na minha visão, tem a ver com as redes de corrupção. A negociação do arrego é violenta, com ambos os lados armados. Na hora de negociar, cada um usa seu poder de fogo para tentar conseguir o arrego. A grande diferença da Colômbia e do México é que lá as organizações criminosas não são controladas de dentro da prisão. É possível que um ou outro chefe preso até continue mandando na organização. Mas não tem essa coisa de governar a massa carcerária. No Brasil é diferente. O quartel-general da facção paulista não está na periferia, mas dentro do sistema penitenciário. A força para a continuidade da facção do Rio, por mais que tenha poder territorial na cidade, vem de dentro do sistema.

A capacidade das facções de controlar a criminalidade na rua a partir das prisões é um fenômeno do Brasil?

Não. Nos Estados Unidos, as gangues de rua e o tráfico de alguns lugares são controlados pelas gangues prisionais. Em Chicago dos anos 1990, por exemplo, havia umas quatro ou cinco gangues. Hoje o controle foi quebrado e a situação está mais fragmentada. Isso inclusive pode ter contribuído para a alta taxa de homicídios em Chicago, porque as gangues brigam entre si. Mas o caso internacional que melhor se compara ao Brasil é o de El Salvador. As “maras” parecem bastante com as facções do Brasil. São organizações cujo centro de poder está no sistema penitenciário que controla gangues de rua. Lá, o problema não é o tráfico, mas a extorsão de moradores. Esse dinheiro flui para os líderes das maras. Elas têm esse mesmo poder que vemos no Brasil. Houve uma famosa trégua no passado, em que as maras negociaram trégua entre si com o apoio do governo, e as taxas de homicídios caíram pela metade de um dia para o outro. El Salvador também encarcera muito.

O Brasil teve um pico de homicídios em 2017 e, desde então, observa-se uma queda. O que explica essa oscilação?

A queda no Ceará, por exemplo, coincide com a trégua de facções no início do ano, em resposta à política recente do Estado de misturar os presos. Foi uma trégua real, que não só reduziu homicídios, mas também mudou a vida cotidiana nas periferias. Onde antes não era permitido frequentar um local dominado pela facção rival, com a trégua passou a ser. Onde o morador precisava mostrar o celular para comprovar que não tinha ligação com comunidade rival, depois da trégua não teve mais essa obrigação. Porém, em outros estados teve queda sem ter havido trégua entre facções. Isso me leva a pensar que, além da trégua formal, houve uma acomodação na guerra. Em 2017, houve uma guerra muito grande, uma briga por território entre as facções locais contra a facção paulista. Parece que deu uma acalmada nesse aspecto. Como 2017 foi ano fora do normal, é de se esperar certo declínio depois. O importante é ver qual é a tendência nos próximos meses.

O senhor concorda com a tese de que a facção paulista ajudou a reduzir os homicídios em São Paulo?

É inegável que tem papel de redução de homicídos e estabilidade em São Paulo. É só imaginar São Paulo com três facções em guerra. Acha que a taxa de homicídio permaneceria tão baixa? Além disso, tem evidências de que a facção regula o homicídio. Dizer que não tem a ver é claramente não ouvir as vozes das comunidades, onde desde 2003 não é permitido matar sem o aval da facção. Por fim, quem está garantindo a paz no sistema prisional paulista? Claro que o Estado tem seu papel, mas é inverossímil dizer que a facção não contribuiu.

O Supremo Tribunal Federal deve voltar a discutir a descriminalização da maconha. Isso ajuda a reduzir a criminalidade?

Ajuda marginalmente. Não vejo que a maconha representa grande parte do lucro dessas organizações. Vamos supor que a maconha esteja totalmente legalizada e que sua comercialização passe a ser feita por empresas legais. É impossível saber exatamente a porcentagem da renda que a maconha representa, mas tenho fortes suspeitas de que boa parte do lucro dessas organizações venha da cocaína e outros ilícitos. Acho que pode enfraquecer um pouco, mas acho perigoso pensar que isso reverteria a situação. Isso em si não vai acabar com as organizações criminosas, nem com os problemas de encarceramento e da violência policial.

É possível acabar com o crime organizado?

A pergunta tem de ser outra. O crime organizado quase sempre existiu em quase todos os países de alguma forma. A questão é: de que tamanho, como funciona, quem faz parte, que tipo de crime organizado queremos ter? A política do Estado influencia muito na operação do crime organizado, que está sempre respondendo a essas ações. Sem encarceramento massivo, é difícil imaginar facções tão grandes como temos hoje em dia. Pensar que vamos acabar com o crime organizado leva a políticas mais duras e a uma certa retórica política de matar todo mundo que é um pouco ilusória. Em vez de pensar em destruir, é bom pensar em como restringir, como reduzir. Ou fazer com que ele seja menos violento, empregue menos jovens, governe menos os civis nas áreas periféricas.

O senhor acha que o Brasil vem perdendo essa guerra contra as facções?

Cada estado tem sua Secretaria de Segurança, sua polícia. É difícil generalizar. Mas, muitas vezes, vimos políticas de segurança contraproducentes, que visam encarcerar mais, que dizem que vão acabar com o tráfico, mas não acabam, que visam matar mais bandidos. Eles matam, mas não acaba com crime, não acaba com a violência. Pelo contrário, faz com que elas se armem mais. O que se tem é uma simbiose entre a política do Estado e o crime organizado. A própria política, por mais repressiva que seja, acaba de alguma forma servindo aos crimes e às facções. Facilitando seu crescimento, militarização, recrutamento, acesso às armas. Dentro do sistema carcerário e pela projeção do poder nas comunidades.
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