Responsive Ad Slot

Bolsistas de universidades privadas denunciam agressões de colegas e professores

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

/ por News Paraíba

Questão veio à tona após discurso de formanda da PUC de São Paulo
 
Foi logo no terceiro dia de aula que Michele Alves, hoje com 23 anos, percebeu que teria de lutar contra o preconceito dentro da própria universidade. Em uma turma de Direito Civil, na PUC de São Paulo, a bolsista ouviu a professora recomendar, zombando, que os alunos não estudassem por livros de resumo de conteúdos. “Até a filha da minha empregada que faz Direito na 'Uniesquina' estuda Direito por sinopse”, disse a docente. Michele, cuja mãe trabalha como empregada doméstica, quis desistir, mas continuou no curso e, ao se formar, na última quinta-feira, discursou sobre a árdua trajetória dos bolsistas nas universidades privadas. O caso dela não é exceção.

— Às vezes demora para sair a bolsa, e eu entrei quase um mês depois que as aulas já tinham começado. No meu terceiro dia de aula, infelizmente, teve esse episódio. O comentário infeliz não foi isolado. É importante que as universidades tenham uma política efetiva de combate a esse tipo de atitude e que isso saia do papel — afirmou Michele, que, no discurso, falou sobre piadas que ouvia de colegas e professores e sobre as dificuldades impostas por ter vindo de uma família de classe baixa, como “a falta de inglês fluente, de roupa social e linguajar rebuscado”.

A PUC-SP, por sua vez, respondeu em nota que “não houve qualquer denúncia, por parte de nossa ex-aluna, sobre acontecimento relatado em seu discurso de formatura” e, por isso, nenhuma medida foi tomada. A universidade destacou ainda que “sempre considerou como objetivos relevantes na formação de nossa juventude: educação humanista e espírito crítico”.

Na PUC do Rio de Janeiro o problema é semelhante ao da instituição paulista, ainda que mais da metade dos 11.784 alunos da universidade sejam bolsistas totais ou parciais (6.195). A sucessão de casos de preconceito levou os estudantes que recebem algum tipo de incentivo a criar o coletivo Bastardos da PUC-Rio, uma ironia ao título de Filhos da PUC, usado pelos alunos da instituição. A página do grupo no Facebook tem quase 14 mil seguidores e recebe relatos de bolsistas que sofrem algum tipo de abuso. A mobilização, segundo um dos criadores do movimento, rendeu represálias por parte da própria PUC.

— Devido à grande repercussão, a universidade ameaçou nos processar por difamação e tivemos que desativar a página por alguns meses. Há uma ouvidoria, porém notamos pouca eficácia em sua atuação — diz Gabriel Gomes, formado em Publicidade e Propaganda e um dos criadores do Bastardos da PUC-Rio. — É bom pontuar que o preconceito não se dá pelo fato de serem bolsistas, já que há muitas bolsas parciais e integrais que pertencem à elite carioca. O preconceito acontece quando você é negro, pobre ou favelado.

ROTINA DE DEBOCHES

Em um dos relatos recebidos, Leonne Gabriel, estudante de Jornalismo e membro do coletivo Nuvem Negra, conta que sentiu um “choque” ao ingressar na PUC-Rio:

Leonne Gabriel, bolsista da PUC-Rio: " “Para um jovem negro que estudou a vida inteira em escola pública e viveu na periferia foi um choque entrar pela primeira vez em uma universidade de elite como a PUC-Rio. Fui o único negro em muitas aulas. As pessoas têm dificuldade de naturalizar a minha presença”

“No meu caso fui o único aluno negro em muitas aulas e também não tive professores negros. Sempre caímos na armadilha de ter uma história única. Sinto que as pessoas têm dificuldade de naturalizar a minha presença na sala de aula. Seja pelas piadinhas com o meu cabelo, cultura, exotização do meu corpo ou deboche do lugar que vim”.

A hashtag #Bolsistanãoéobrigado, criada no ano passado, foi outro instrumento para aumentar a conscientização sobre o problema. Em algumas publicações há frases como “#Bolsistanãoéobrigado a aguentar seu elitismo” ou “#Bolsistanãoéobrigado a ter livro caro para frequentar sua aula”.

Questionada sobre o tema, a universidade afirma que o respeito à diversidade é um de seus valores e que, recentemente, realizou uma campanha para a valorização das diferenças. A PUC-Rio diz ainda que concede auxílio alimentação e transporte aos estudantes bolsistas, entre outros benefícios. Em entrevista ao Globo, o vice-reitor comunitário da instituição, Augusto Sampaio, acrescenta que a PUC-Rio condena práticas preconceituosas:

— É lamentável. O aluno ou o professor que faz isso não entendeu o espírito da universidade. Quando há casos de professores que fizeram comentário preconceituoso, é instaurada comissão de sindicância para tentar apurar. Quando comprovado, aplicamos punições.

Um evento esportivo que era para ser de integração entre novos alunos da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, no início do ano passado, também terminou em preconceito. Da arquibancada, alguém gritou que não queria uma “negrinha” ali. A ofensa foi dirigida a Camila, de 18 anos, que cursa Administração Pública graças a uma bolsa social, e partiu de um aluno de Economia. A estudante, cujo curso custa R$ 4,1 mil mensais, resolveu seguir o jogo para não se expôr. Mas, após alunos exigirem resposta da instituição, a FGV, em nota, repudiou o ato de discriminação e providenciou uma comissão de sindicância para apurar os fatos e adotar medidas cabíveis. Camila, que pediu para não ter o sobrenome divulgado, afirma ter percebido mudanças, mas sentir falta de ações mais práticas:

— Houve uma assembleia após o ato racista, com coordenadores e professores do curso, a fim de buscar soluções. Todos se mostraram abertos, mas atos concretos, de conscientização entre os alunos, não ocorreram. A instituição de ensino, como um todo, não tem hoje resposta para esse viés inconsciente racista tão enraizado. E como solução apresentam sinceras desculpas, mas não uma reparação estrutural.

Linda Sousa, ex-bolsista da UDF: "Passei 20 anos fora da escola e ainda assim consegui uma bolsa integral em Direito. Pedi que uma professora explicasse devagar e ela disse: ‘Já que o reitor deixou entrar, vai ter que estudar pra ficar’. Respondi que ser bolsista era mérito meu e que tinha orgulho disso" - Arquivo pessoal / .

A alegria vivida por Linda Sousa, de 48 anos, após conquistar uma bolsa integral — mesmo estando ausente das salas de aula por duas décadas— foi dissipada logo no início do ano letivo. A goianiense, que cursava Direito no Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) em 2004, primeiro ano de vigência do Programa Universidade para Todos (Prouni), sentiu pelo comportamento da professora de Sociologia que precisaria brigar para receber o mesmo tratamento dado aos demais.

— Pedi que ela falasse devagar para anotar a aula e ouvi “já que o reitor deixou entrar, vai ter que estudar pra ficar”. Levantei e disse que ser bolsista era um mérito meu e que tinha orgulho disso. Ela se arrependeu e pediu desculpas. Tem certas situações em que você tem que reagir — diz Linda.

Em nota, o UDF afirmou que repudia toda e qualquer forma de discriminação, dentro ou fora de suas instalações.
© Todos os direitos reservados.